Carros de Autônomos pt

Right in the Middle

A classificação de estrelas teve um significado bem cartunesco desta vez.

Carros autônomos não são novidade. Desde 1920 eles já são alvos de pesquisa e polêmica. Eu sou louco por carros desde criança, mas confesso que hoje me apavoro quando entro em um quatro-rodas cujo motorista não me inspira confiança. Por isso, a ideia de entrar em um veículo autônomo me conforta, exceto quando eu lembro dos sistemas que costumava dar manutenção. “Pessoal, o cliente solicitou um alerta para quando o disco passar de 100% de utilização.” – Seria interessante ver algo semelhante para nível de combustível. O fato é que se eu fosse atendido por um carro autônomo ao solicitar uma corrida, teria evitado alguns transtornos.

Aquele motorista tinha 5 estrelas. Mas eu não chequei há quanto tempo ele estava ativo na plataforma. Quando percebi que ele tinha apenas um mês, já era tarde demais pra cancelar a corrida. Chegando em minha casa, prontamente disse para ele que poderia seguir por cima. Ele só não levantou vôo por falta de brevê, entrou na contra-mão mesmo:

– Nãããããoooo!!!!! Essa via é de mão única!

– Desculpe, senhor! É que eu sou novo aqui na cidade.

Pensei em sair da área de TI pra ganhar dinheiro com pontes de safena. Por quê cargas eletromagnéticas esse animal se prestou a atender em uma cidade que não conhece? Pior ainda: como não percebeu que, em uma rua movimentada, onde todos os carros em todas as faixas vão em um único sentido, o contrário seria proibido? Pensei que houvesse marcado a opção “com emoção”, mas Brasília está longe demais das dunas do litoral. Passado o susto, tentei acalmá-lo pra chegar vivo ao meu destino:

– Tudo bem, eu vou ajudá-lo a chegar no local.

– Obrigado, senhor!

Comecei a guiá-lo pelas ruas candangas. “Curva à esquerda”, “retorno à direita”, “pedestre à frente”, “meio-fio embaixo” (já era tarde demais). Depois de uma prévia do que seria o Rally dos Sertões para não-habilitados da terceira idade, cheguei ao local desejado. Na hora do almoço, pedi outra corrida pelo aplicativo. Desta vez pedi uma modalidade mais cara, como se isso fosse resolver alguma coisa.

O motorista da vez tinha as mesmas 5 estrelas e o mesmo tempo de praça que o anterior. Ao chegar ao local, perguntei se poderia colocar minha mala entre os bancos de trás e do passageiro, ele disse que sim. Como o banco do passageiro estava totalmente para trás, pedi que ele afastasse um pouco pra frente, assim minha mala caberia no espaço. Ele afastou… mas não foi o banco.

Sim, o infeliz afastou o veículo pra frente, subindo com a roda traseira no meu pé e ali repousando com toda a leveza e graça de um mastodonte bailarino. Precisava ser bem discreto pra não deixar meu algoz desnorteado:

– O senhor poderia dar ré só um pouquinho?

– …

– Só uma ré, rapidinho, por favor?

– …

– Chega só um pouquinho pra trás de novo?

– …

– Cara, você está EM CIMA DO MEU PÉ! VOCÊ PODE FAZER O FAVOR DE TIRAR O CARRO DE CIMA DO MEU PÉ?

Pronto, fudeu! O cara travou e não conseguia engatar a ré. Pelo menos o carro era automático e não deu aquela chacoalhada gostosa de carro morrendo em cima do que sobrou do meu aparelho locomotor. Não sei ao certo quanto tempo se passou até a retirada do carro, mas pareceram infinitos dez minutos. Einstein estava certo.

Para a minha surpresa, o motorista reaprendeu a falar depois do milagre da marcha à ré:

– Machucou?

– PA-RA CA-RA-LHOOOO!

Na minha cabeça, eu respondi assim:

– Imagina… claro que não! Só não tirei o carro eu mesmo porque acabei de fazer as unhas das mãos! Inclusive, a Hinode tem uns esmaltes fan-tás-ti-cos. Um taxista de Vitória quem me mostrou e…

Tá bom, tá bom, parei. Minha vontade mesmo era de colocar as bolas dele atrás do pneu e inventar a marcha ao réu. Mas mantive a calma e pedi pra que ele me deixasse no shopping. Eu já tava ferrado mesmo, pelo menos poderia almoçar antes de ir pro hospital.

Meus amigos estavam me esperando no Conjunto Nacional, o shopping preferido de Pero Vaz de Caminha. A alça retrátil da mala serviu de bengala e parecia que eu levava uma melancia com chifres. Nunca fui tão observado na vida. Almoçamos e segui para o hospital. Temia muito em ficar encostado pelo INSS. Na última vez que isso aconteceu, tive que fingir ter passado fome pra conseguir ser atendido no dia marcado pois, obviamente, o médico que iria me atender faltou:

– Senhora, veja o meu cinto frouxo! Estou há dois meses sem almoçar! Minha família está passando fome! Eu só preciso poder voltar a trabalhar… só isso.

– Desculpe, senhor. Que situação horrível. Vou tentar encaixá-lo com outro médico pra te ajudar.

– Minha família agradece imensamente.

Parecia que estava pulando pra dentro da escola. Era pra eu ter ficado 30 dias encostado, depois de 60 dias já não aguentava mais e, como não tinha passado pela perícia, não poderia voltar a trabalhar, nem pedir demissão. Aquela mentira caiu muito bem, e eu não estava nem um pouco com vontade de passar por essa cilada novamente. Já me bastam as do dia-a-dia. E eu não tenho mais aquele cinto.

Chegando no hospital, consegui ser atendido prontamente pelo ortopedista de plantão e ele me passou uns exames pra fazer. Também me disse que eu poderia voltar direto pra sala dele. Ele só esqueceu de me dizer que voltar direto não era parte do processo do hospital e eu precisava de outra senha. Tive que esperar uma brecha do segurança pra passar de fininho sem ser notado. Até hoje me pergunto o que tirou tanto a atenção dele pra não notar um retardado mancando com uma mala de viagem passando pelo portão de Asgard.

Para a sorte do meu azar, o carro tinha o motor na parte da frente. Isso somado ao fato de eu estar usando tênis na ocasião contribuiu para que nada tivesse acontecido com o meu pé. Nem inflamou! O doutor examinou os resultados múltiplas vezes e, espantado, me disse que eu tive sorte.

Em menos de dois dias nem parecia mais que meu tênis velho fora estreado por um pneu comandado por um gorila. Penso que não passaria novamente por isso caso a frota fosse de carros autônomos… até eu lembrar da Ana Maria Braga.